Terça-feira, Novembro 26, 2024

Cores, viagens, mãos desconhecidas…

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 “A censura na ditadura militar no Brasil sufocou a criatividade de muitos compositores brasileiros, mas ninguém chegou a ter a carreira tão prejudicada pela repressão quanto um cantor cujo nome, em tupi-guarani, significa “livre”“.

 

                             

 Já que estamos vivendo tempos de declínio cultural, onde riscos e borrões são chamados de pintura, amontoados de ferro velho retorcido, arte, gemidos e gritos dão renome a cantores, letras das mais ridículas e empobrecidas caracterizam composições de sucesso, dá gosto relembrar compositores e cantores como o grande e inesquecível poeta Taiguara!

Taiguara é dono de uma das trajetórias mais inusitadas da música brasileira. Nascido por acaso em Montevidéu, terra de Conde de Lautreamont – pseudônimo de Isidore Ducasse, a maior referência dos surrealistas no início do século XX-, o filho do maestro e bandoneonista Ubirajara Silva e da cantora Olga Chalar incorporou elementos do surrealismo europeu e da literatura fantástica latina americana não só na sua inacreditável obra, mas na sua vida de uma forma bela e trágica. Ele veio, em definitivo, para o Brasil quatro anos depois. 

O nascimento no Uruguai é somente mais um dado biográfico improvável que torna tudo mais curioso ainda na história desse que foi um dos compositores mais brasileiros no sentido dialógico e transgressor dentro de uma tradição musical que se consolidou no decorrer do século passado. O nascimento no Uruguai guarda a mesma ironia que cerca o birmanês Nick Drake, num acaso do destino que escolheu o longínquo país asiático para ver nascer um dos compositores mais influentes na música inglesa a partir dos anos 70. 

Considerado um dos símbolos da resistência à censura durante a ditadura militar brasileira, Taiguara foi um dos artistas mais censurados do país durante a ditadura e isso, como não poderia deixar de ser, marcou profundamente sua vida e sua obra. Foram mais de cem canções vetadas pelos censores. Esse número dá conta de toda uma obra e seria motivo suficiente para qualquer pessoa sensata no mínimo pensar em mudar de ramo, antes de tomar atitude, digamos, mais radical. Ao invés disso ele partiu pra cima e acirrou o discurso. Exasperado com a perseguição e impedido de continuar trabalhando no Brasil ele se auto exilou na África (década de 70) – destino incomum para exilados políticos – seguindo depois para a Europa. Nesse período aprofundou seus vínculos com a resistência cultural incorporando elementos de outras culturas que dialogam em sua obra com a tradição musical brasileira. Suas canções passaram a assumir um sentido agudo de liberdade ao mesmo tempo em que incorporava uma urgência na transgressão dos limites estéticos da canção, numa relação orgânica e indissociável entre letra, música e posicionamento político. 

Essa opção radical fica clara no disco “Imyra, Tayra, Ipy”, gravado ao longo de 75 e ‘lançado’ no ano seguinte, no retorno do exílio. Um dos discos mais instigantes e exuberantes da vasta e rica discografia setentista. Para esse trabalho Taiguara convocou uma orquestra com nada menos que 80 integrantes e chamou o endiabrado maestro Hermeto Paschoal para auxiliar nos arranjos e na direção musical, num período em que o bruxo albino ainda se interessava por e colaborava com cancionistas. Entre os músicos convocados constavam ainda nomes como o de Wagner Tiso, Toninho Horta, Nivaldo Ornelas, Jacques Morelenbaum, Novelli, Zé Eduardo Nazário e seu pai Ubirajara Silva entre outros. O disco que radicalizou o discurso contra a repressão sem abrir mão do experimentalismo musical e do esgarçamento dos limites da canção foi recolhido em tempo recorde por uma ditadura atônita, num período em que a dita já era supostamente mais branda. Menos de 72 horas após ser distribuído o disco foi recolhido das lojas, para nunca mais ser lançado oficialmente no mercado nacional.

“O que é talvez pior que a burguesia / é à sombra das pequenas tiranias / Que existe cá entre nós, cá entre nós,”… trecho de “Conflito (Sexo Escravo)”, de 1974, proibida pela censura. 

Desde sempre sou fã de Taiguara, e quanto mais o tempo passa, mais percebo o quanto me identifico com o riquíssimo universo de sua poesia.

Com tanta música sem qualidade na mídia, fica difícil entender como uma obra excepcional, em melodia e inspiração poética, seja deixada no esquecimento. Sinto-me privilegiado em ter participado desta geração.

Aos que não viveram esse tempo, felizmente restam alguns registros para que possam avaliar o estado no qual a cultura popular chegou, quando comparamos com esses grandes do passado.

Eu quero então lhes apresentar esse artista belo e cheio de arte que morreu tão prematuramente…  

Neste ano de 2015, duas décadas sem Taiguara.

Bom, o resto à sensibilidade sabe.

 

“PS.” Só feche o seu livro quem já aprendeu “…

 

 

 

 

 

 

*Marco Antonio Poletto é Gestor no Poder Judiciário, Historiador, Articulista e Animador Cultural

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