Uma cadeia falha de fiscalização que inclui carência de fiscais para milhares de estabelecimentos e criadores de gado, além de uma cultura consumidora antiquada, fazem com que a carne abatida nos chamados “Frigo Mato” consigam chegar aos açougues e depois à mesa das famílias jalesenses com razoável facilidade. Esse seria o destino das 12 cabeças de gado furtadas por R.S.M., assassino confesso de Marcos Longo, o Curió, no domingo dia 25 de fevereiro (leia matéria completa nesta edição). 11 delas foram recuperadas pela polícia. Uma pode ter virado churrasco.
O problema começa na fiscalização agropecuária na zona rural. Segundo a legislação, a Defesa Agropecuária (D.A.) é responsável apenas pela ponta da cadeia de produção que inclui as propriedades rurais e o transporte do gado. Em Jales, existem aproximadamente 340 mil cabeças de gado espalhadas por 4.800 criadores credenciados e as informações sobre esse rebanho são passadas à D.A. pelos próprios criadores, com relativa garantia de veracidade. Semestralmente, eles precisam declarar o número de cabeças, sexo, idade e situação das vacinas e a fiscalização “in loco” é feita apenas por amostragem em propriedades escolhidas aleatoriamente.
Segundo Jamil Atiê Júnior, chefe do escritório, muitos criadores e comerciantes recorrem a abatedouros de fundo de quintal para reduzir o custo da venda e aumentar seu próprio lucro. “A carne clandestina é mais barata porque não recolhe impostos, mas, sobretudo, porque não segue nenhuma norma de higiene e segurança, como temperatura na hora do abate, embalagem, manipulação e transporte, que acarretam em custos ao criador/vendedor”.
Os riscos para a saúde da população são inúmeros. Toda a carne que é abatida e vendida sem obediência às normais de higiene e conservação pode transmitir doenças graves aos seres humanos. Entre elas, a tuberculose ou brucelose e a cisticercose ou “canjiquinha”, que são larvas dos parasitas popularmente conhecidos como “solitária”.
Cabe ao escritório da Defesa Agropecuária fiscalizar e autorizar os estabelecimentos dignos de receber o SISP (Selo de Inspeção Estadual de São Paulo), que autoriza o abate e comercialização de gado e derivados entre municípios do Estado. Em Jales não existe nenhum estabelecimento com essa autorização.
De acordo com o médico veterinário Mário Sakashita, que atua no órgão, “por conta disso, os consumidores de Jales só encontram dois tipos de carne nos açougues e supermercados: a que é comprada de frigoríficos autorizados e sediados em outras cidades ou a que é abatida clandestinamente em propriedades rurais, os chamados ‘FrigoMato’ ou ‘Árvore Machado”, disse.
A cidade não tem frigorífico em funcionamento desde o final de 2006 quando foi deflagrada a Operação Grandes Lagos, que denunciou 36 administradores de frigoríficos na região.
Para o veterinário, o combate à comercialização de carne clandestina precisa ser feito com um trabalho em conjunto e constante de todos os órgãos envolvidos no processo. Inclusive o consumidor, que precisa exigir a qualidade do produto que leva para a mesa da sua família. “O consumidor precisa ter consciência de que quando ele come carne abatida e mantida sem os devidos cuidados de higiene, ele corre sérios riscos de saúde”, disse Sakashita.
Cada fiscal municipal responde por mais de 500 estabelecimentos
Porém, é na outra ponta da cadeia, na fiscalização aos pontos de venda, que a situação é mais dramática. A Vigilância Sanitária, órgão responsável pelo setor, conta com apenas quatro ficais para atender mais de 2 mil estabelecimentos de saúde e alimentação de Jales. Entre eles, clínicas, laboratórios, lanchonetes, restaurantes, açougues e supermercados.
Sem incluir nessa conta as denúncias sobre galinheiros, currais e chiqueiros irregulares na cidade e as autuações sobre criadouros de dengue e animais domésticos, que também são responsabilidade da vigilância sanitária.
Em resumo, se cada fiscal visitar sozinho um estabelecimento por dia (geralmente isso não acontece), levará um ano e quatro meses de trabalho ininterrupto (sem férias, feriados e finais de semana) para visitar esse mesmo estabelecimento novamente.
Normalmente, a equipe se ocupa com serviços burocráticos e atende somente em caso de denúncia ou renovação de licença de funcionamento. As próprias fiscais reconhecem que raramente fazem averiguações aleatórias, as chamadas “batidas”.
Pior que isso. Sem conhecimento veterinário, mesmo quando vão a um estabelecimento, podem ser facilmente enganadas, já que não conseguem saber se a carne apresentada pelo comerciante é a mesma que consta da Nota Fiscal.
Apesar de manterem uma média de autuações de duas ou três por mês, nenhuma delas soube informar quando foi aplicada a última multa a um estabelecimento irregular. Antes de chegar à sanção pecuniária, a Vigilância Sanitária percorre um extenso e tolerante caminho.
De acordo com as fiscais, a legislação e a burocracia dificultam a punição e a paciência com os infratores acaba sendo o tom do trabalho.
“A gente trabalha mais com orientação e com o Cronograma de Adequações. Vamos ao estabelecimento, verificamos a situação e sugerimos as adequações. Eles então nos pedem um prazo para adequar o estabelecimento e nós programamos outra visita. Às vezes, eles pedem prorrogação do prazo e nós avaliamos o caso”.
Somente depois de todo esse processo, e antes de aplicar uma multa, é preciso emitir Autos de Infração que concedem ao comerciante irregular um prazo de 15 dias para adequação. “Normalmente, eles não são multados porque fazem as adequações e essa autuação perde a validade. A partir de então, se verificarmos nova infração, temos que emitir outro Auto de Infração e esperar todo o prazo novamente”.
Com a Folha de Pagamento estourando os limites legais, dificilmente a Prefeitura vai contratar novos fiscais e a situação dificilmente vai ser resolvida. Enfim, o povo vai continuar correndo riscos, sem saber, com certeza, a procedência da carne que consome.