Segunda-feira, Novembro 25, 2024

“As marcas da tortura sou eu”

Date:

No dia 16 de janeiro de 1970, uma jovem mineira de apenas 22 anos passou a conhecer o inferno dos porões da Ditadura Militar. “Ela” sentiu no próprio corpo, durante inúmeras sessões de tortura.

 Até que ponto um regime de exceção é capaz de chegar para massacrar uma pessoa. Foram dois anos e dez meses de sofrimento, violência e solidão em presídios de São Paulo, Rio de Janeiro e Juiz de Fora.  Então secretária de governo no Rio Grande do Sul, “Ela” prestou em 2001 um longo depoimento para integrantes do Conselho dos Direitos Humanos de     Minas Gerais. É o relato vivo, real e doloroso sobre o que “Ela” sofreu nos presídios, sobretudo quando foi mandada à cidade de Juiz de Fora (MG) para ser interrogada. Ao todo, “Ela” ficou presa nove meses a mais do que previa a sentença estipulada pela Justiça Militar. Onze anos depois do depoimento, “Ela” foi a responsável pela implantação da Comissão Nacional da Verdade, que está colhendo relatos de quem sobreviveu e investigando casos de violação dos diretos humanos no período da ditadura (1964-1985).  Nos textos abaixo, estão trechos do depoimento dela em que relata como uma pessoa tão jovem foi obrigada a ver a morte de tão perto e a enfrentar o medo e a solidão.

Marcas da Tortura:- “Acredito hoje ter sido por isso que fui levada no dia 18 de maio de 1970 para Minas Gerais, especificamente para Juiz de Fora, sob a alegação de que ia prestar esclarecimentos no processo que ocorria na 4ª CJM. Mas, depois do depoimento, eu fui levada (ou melhor, teria de ser levada para São Paulo), mas fui colocada num local (encapuzada) que sobre ele tinha várias suposições: ou era uma instalação do Exército ou Delegacia de Polícia. Mas acho que não era do Exército, pois depois estive no QG do Exército     e não era lá.” “Nesse lugar fiquei sendo interrogada sistematicamente. Não era, sobretudo, sobre minha militância em Minas. Supuseram que, tendo apreendido documentos do Ângelo [Pezzutti, militante do grupo dela] que integram o processo, achavam que nossa organização tinha contatos com as polícias Militar ou Civil mineiras que possibilitassem fugas de presos. Acredito ter sido por isso que a tortura foi muito intensa, pois não era presa recente; não tinha ‘pontos’ e ‘aparelhos’ para entregar”.

Pau de Arara:- “No início, não tinha rotina [nas sessões de tortura]. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Começava assim: ‘Em 1968 o  que você estava fazendo?  e acabava no Ângelo Pezzuti e sua fuga, ganhando intensidade, com sessões de pau de arara, o que a gente não aguenta muito tempo.” 

Palmatória:- “Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador ‘experiente’, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em São Paulo usaram pouco esse ‘método’. No fim, quando estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me    alimentava    direito.

Motivos:- “Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (…) foi uma hemorragia de útero. Deram-me uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em Minas, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas”.

Ameaças:- “Depois [vinham] as ameaças: ‘Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém vai saber que você está aqui. Você vai virar um ‘presunto’ e ninguém vai saber’. Em São Paulo me ameaçaram de fuzilamento e fizeram a encenação. Em Minas não lembro, pois os lugares se confundem um pouco.”

Sequelas:- “Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, em médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato.”

Sozinha na cela:- “Dentro da Barão de Mesquita (RJ), ninguém via ninguém. Havia um buraquinho na porta, por onde se acendia cigarro. Na Oban, as mulheres ficavam junto às celas de tortura. Em Minas sempre ficava sozinha, exceto quando fui a julgamento, quando fiquei com a Terezinha. Na ida e na vinda todas as mulheres presas no Tiradentes sabiam que eu estava presa: por exemplo, Maria Celeste Martins e Idoina de Souza Rangel, de São Paulo.”

Bomba:- “Em Minas, fiquei só com a Terezinha. Uma bomba foi jogada na nossa cela. Voltei em janeiro de 1972 para Juiz de Fora. Nunca me levaram para BH [Belo Horizonte]. Quando voltei para o julgamento, me colocaram numa cela, na 4ª Cia. de Polícia do Exército, 4ª Região Militar, lá apareceu outra vez o Dops que me interrogava. Mas foi um interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o julgamento lá dentro.”

Frio    de    cão:- “Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro”. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital. Tive o ‘prazer’ de conhecer o comandante general Sílvio Frota, que posteriormente me colocaria na lista dos infiltrados no poder público, me levando a perder o emprego.

Assinado:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

*Marco Antonio Poletto é Gestor no Poder Judiciário, Historiador, Articulista e Animador Cultural

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

spot_imgspot_img
spot_imgspot_img
spot_imgspot_img

Outras matérias relacionadas
RELACIONADAS

Audiência Pública para elaboração da LOA 2025 será no dia 23 de outubro

Com o objetivo de garantir transparência e a participação...

Prefeitura contrata empresa para revisão do Plano Diretor de Turismo

A Prefeitura de Jales acaba de finalizar a contratação...

Orçamento de Jales deve ser de R$ 322,7 milhões em 2025

Já começou a tramitar na Câmara Municipal de Jales...

Câmara aprova suplementação de R$ 1,7 milhões para diversas secretarias

A Câmara de Jales aprovou e já foi publicado...