Quem não observa atentamente a situação dos artistas durante a pandemia do novo coronavírus pode ter a impressão de que apenas os problemas financeiros os afligem. Mas os impactantes depoimentos colhidos de alguns deles pel’A Tribuna mostram que a falta de dinheiro é apenas uma parte da angústia que vai muito além disso, e inclui depressão, medo, abstinência dos palcos e até pensamentos suicidas. Um ano depois do início da pandemia, os equipamentos e instrumentos acumulam poeira enquanto aguardam o momento de serem novamente ativados.
Conversamos com quatro cantores de duas duplas sertanejas que mantinham carreira consolidada em Jales e na região. Ambos com robusta agenda preenchida por compromissos que se estendiam por meses. Em algumas datas, estavam previstos até três shows em uma só noite. Tudo foi repentinamente cancelado. O dinheiro guardado foi aos poucos sendo consumido pelas necessidades do dia-a-dia e os artistas tiveram que adiar projetos e buscar novas fontes de sobrevivência. Como conseqüência, os artistas tiveram que abandonar temporariamente a paixão e recorrer ao pragmatismo.
ADIAMENTOS INFINITOS
Ed Carlos, da dupla com Bruno, contou que os dois primeiros meses do ano passado, que normalmente são uma época de baixa temporada para as duplas, superou as expectativas. “Foi uma loucura! Fizemos média de 3 shows por semana. Teve dia de fevereiro que fizemos três shows numa noite e entramos março com uma grana legal. Na segunda de carnaval, fizemos um casamento em Jales que acabou meia-noite. Um segundo em Estrela, umas 3 horas e, em Santa Albertina às 5 da manhã”
“Mas quando começou a pandemia e as restrições de circulação começaram a ser impostas parou tudo. No começo, a gente foi se virando. As lives eram 100% beneficentes e os patrocínios mal pagavam os custos”.
Naquele momento, Ed Carlos tinha uma bebe de 2 meses e Bruno tinha um menino de 1 ano.
“Minha mulher estava de licença maternidade e a gente ficou em casa de verdade. Eu sem trabalho e ela de licença. Mas o casamento sobreviveu”, brinca.
A dupla Bruno e Ed Carlos, que tinha se especializado em casamentos, viu todos os compromissos serem remarcados. Eram cerca de 25 casamentos marcados. Vários para 2021. “Mas começou a loucura de remarcar. Os de abril remarcaram pra julho, agosto… e o pessoal sempre adianta uma porcentagem no ato do contrato. Então fomos vivendo disso. Em junho fizemos uma live, mas desde já anunciamos que não era beneficente, que era pra gente mesmo. Foi muito bom, conseguimos pagar várias contas atrasadas que já estavam acumulando. Em agosto ao participar de uma live beneficente tanto eu quanto minha esposa, e o Bruno e a esposa dele, pegamos Covid, mas graças a Deus com sintomas leves” contou.
Em caminho inverso aos shows, as dívidas foram aumentando e foi necessário contar com o amparo dos sogros e dos pais, mas chegou um ponto que não tinha mais dinheiro e foi preciso buscar outros caminhos.
“Acho que como todos, quando a pandemia se iniciou achávamos que seria algo rápido e jamais pensamos que passaríamos as dificuldades que estamos passando hoje. Eu e o Ed tínhamos um belo ano, ainda mais pelo fato da dupla completar 10 anos de carreira. Mas aí as coisas foram ficando piores, piores e quando se agravou, procuramos achar alguma esperança na questão financeira nas lives, porque tínhamos contas pra pagar e vivíamos apenas da música. Infelizmente a maioria das lives, mais ou menos umas 25, foram pra ajudar entidades da região [sem faturamento para as bandas].Foi onde eu e o Ed começamos a perceber que as contas foram vencendo e dinheiro não entrava”, disse, Bruno Gival.
“Em setembro, o Bruno começou a fazer canecas personalizadas pra fazer uma renda e deu muito certo. Tanto que no fim de ano precisava desligar o celular. Eu distribui uns currículos e logo fui contratado pra assumir o departamento financeiro da Jalecell. Em novembro voltamos a tocar, tudo parecia que ia voltar ao normal. Mas uns 40 casamentos voltaram a ser marcados e remarcados. Os de 2020, 2021, 2022… porque sempre vinham os decretos e consequentes cancelamentos”.
Entretanto, são os contratos já assinados que dão esperança de retorno. “Pois se não, não teríamos mais vontade não”.
Para Bruno, os primeiros 6 meses da pandemia foram os piores. “Nós temos filhos, temos contas pra pagar e víamos que todo mundo tentava fazer algo pra ajudar alguns outros setores, como mercados, comércio em geral, mas nunca víamos ninguém pensar na classe musical. A não ser quando tinha que fazer alguma live pra ajudar alguma entidade. Foi bastante desesperador. De verdade! Eu particularmente conversava com o Ed todos os dias e perdemos muitas noites porque não conseguíamos dormir”.
Perguntado se tem esperança de voltar no mesmo ritmo de antes da pandemia, Ed Carlos vaticinou: “Quando voltou em novembro foi um pouco complicado. Estávamos enferrujados. Houve uma renovação da banda e os mais velhos resolveram parar. Mas uma certeza eu tenho. Vamos voltar com tudo. Estou com 36 e vou até os 40 nesse piquei aí. Só que percebi que não dá pra viver mais só de musica. É arriscado. No meu emprego consegui aumento já no segundo mês. Pretendo ficar lá também, me consolidar”.
ANGUSTIANTE
Os artistas não minimizam os problemas financeiros, mas revelam que a privação dos shows deixa consequências emocionais profundas. “Eu pirei às vezes. A cabeça fica um turbilhão. Tive vários problemas, mas a família ajudou muito”, disse Ed Carlos.
Perguntado se sente falta dos palcos e do calor do público, Bruno Gival disse que se sente angustiado cada vez que vê os instrumentos pegando poeira e as caixas relegadas a um canto, sem utilidade.
“Poxa vida … todos os dias. A noite, sonho pelo menos 3 vezes por semana que estou fazendo show. Não tem como esquecer né? Quando você entra em casa e vê as coisas guardadas com pó, sem usar, é frustrante. Às vezes, eu acordo à noite e choro, porque a pessoa que é músico ou algo do tipo, tem um sentimento diferente [não é pelo dinheiro]. Então você ter que deixar de fazer o que mais ama, e o pior ainda, sem previsão de voltar…Isso que dói ainda mais. Eu tenho mil violões aqui em casa, mas eu evito de tocar porque fico triste. Toda vez que pego pra tocar vem uma lembrança e é angustiante”, pontuou.
LUCAS E JOÃO MARCOS
No primeiro trimestre do ano passado, no começo da pandemia, a dupla Lucas e João Marcos estava se preparando para gravar o primeiro DVD ao vivo. O projeto foi adiando indefinidamente. “Eu e o Lucas em 3 anos de carreira tínhamos juntado um montante pra gravarmos o nosso DVD em março de 2020, justamente no mês que explodiu. Infelizmente tivemos que adiar, sem previsão de quando vamos poder gravar novamente”, contou João.
Bacharel em direito, seu parceiro, Lucas disse que tem procurado manter a visibilidade nas redes sociais para que não caia no esquecimento durante a pandemia e possa retornar com mais facilidade ao fim do período. “Quem não é visto não é lembrado”.
Os dois parceiros tiveram que sobreviver dessas economias e com a ajuda de familiares. “Ano passado teve a questão da Lei Aldir Blanc, que ajudou, porém seria importante liberarem novamente o recurso por que infelizmente a situação está se estendendo demais e a vacinação em nosso país está muito lenta. Sem isso, é inviável realmente eventos públicos”.
Por sorte, os músicos da banda eram contratados por show e não foi necessário arcar com despesas de rescisão contratual. “Eles tinham outros trabalhos paralelos, então, graças a Deus não estão passando dificuldade. Na verdade, estão até melhor que nós”.
João se considera privilegiado em comparação com outros artistas que perderam completamente a única fonte de renda. A ajuda da família tem sido fundamental para atravessar a crise. “Fomos privilegiados por ter nossas economias e por termos auxílio de nossas famílias, mas em geral não é isso que acontece e nos solidarizamos com todos os músicos e demais pessoas que estão passando por necessidades, da mesma forma que nos solidarizamos com as vítimas da doença. Na minha opinião era papel do governo dar subsídios suficientes para podermos ter o mínimo necessário para que ninguém passe dificuldades nesse período necessário de distanciamento social”, opinou.
Lucas contou que vivia da música e conseguia se sustentar e que passou a depender novamente da mãe e até da avó. “A minha única fonte de renda é a música e travou tudo, nos afetou demais. Não passo necessidade, mas a situação é complicada. Eu conheço muita gente que teve que se reinventar. Conheço músicos que abriram lanchonete, começaram a vender lanche por delivery e até produtos pela internet pra sobreviver”.
Não está nos planos da dupla parar de trabalhar com música. Lucas e João Marcos já planejam até uma nova live. “Estamos vendo para retornarmos com uma live, também para a Santa Casa e estamos buscando apoio das empresas para conseguirmos bancar os custos de gravação”.