Segunda-feira, Novembro 25, 2024

Dom Paulo Evaristo Arns: mestre, intelectual refinado e amigo dos pobres

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Este texto foi publicado originalmente no site de Leonardo Boff.

Perdi um mestre, um mecenas, um protetor e um amigo entranhável. Coisas importantes vão ser ditas e escritas sobre o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, falecido nesta quarta feira, dia 14 de dezembro. Não direi nada. Apenas dou meu testemunho.

Conheci-o no final dos anos 50 do século passado em Agudos-SP quando ainda era seminarista. Voltou de Paris com fama de ser doutor pela Sorbone. No seminário com cerca de 300 estudantes introduziu metodologias pedagógicas novas. Fez-nos conhecer a literatura grega e latina, línguas que dominava como dominamos o vernáculo. Fez-nos ler as tragédias de Sófocles e de Eurípedes em grego. Sabíamos tanto grego que até representamos a Antígona em grego. E todos entendiam.

Depois vim a conhecê-lo em Petrópolis como professor dos Padres da Igreja e da história cristã dos dois primeiros séculos. Obrigava-nos a ler os clássicos em suas línguas originais, São Jerônimo, seu preferido, em latim e São João Crisóstomo, em grego. Quando o visitei há dois anos no convento de religiosas na periferia de São Paulo o encontrei lendo sermões em grego de São João Crisóstomo. Foi nosso Mestre de estudantes durante todo o tempo da teologia em Petrópolis de 1961-1965. Acompanhava com zelo cada uma em suas buscas, com um olhar profundo que parecia ir ao fundo da alma. Era alguém que sempre procurou a perfeição. Até entre nós estudantes disputávamos para ver quem encontrava algum defeito em sua vida e atividade. Cantava maravilhosamente o canto gregoriano no estilo de Solemnes, mais suave do que o duro de Beuron que predominava até a chegada dele. Durante quatro anos o acompanhei na pastoral da periferia. Nas quintas-feiras à tarde, no sábado à tarde e no domingo todo, acompanhei-o na capela do bairro Itamarati em Petrópolis. Visitava casa por casa, especialmente as famílias portuguesas que cultivavam flores e horticultura. Onde chegava logo fundava uma escola. Estimulava os poetas e escritores locais.

Depois da missa das dez os reunia na sacristia para ouvir os poemas e os contos que haviam produzido durante a semana. Estimulava intelectualmente a todos a lerem, escreverem e a narrarem para os outros as histórias que liam. Era um intelectual refinado, conhecedor profundo da literatura francesa. Escreveu 49 livros. Instigava-nos a seguir o exemplo de Paul Claudel que costumava cada dia escrever pelo menos uma página. Eu segui seu conselho e hoje já passei dos cem livros.

O que sempre me impressionou nele foi seu amor e seu afeto franciscano pelos pobres. Feito bispo auxiliar de São Paulo    ocupou-se logo com as periferias, fomentando as comunidades eclesiais de base e empenhando pessoalmente Paulo Freire.

Como era tempo da ditadura, especialmente férrea em São Paulo, logo assumiu a causa dos refugiados vindo do horror das ditaduras da Argentina, do Uruguai e do Chile. Sua missão especial foi visitar as prisões, ver as chagas das torturas, denunciá-las com coragem e defender os direitos humanos violados barbaramente. Correu riscos de vida com ameaças e atentados.

Mas como franciscano sempre mantinha a serenidade como quem está na palma da mão de Deus e não nas garras dos policiais da repressão. Talvez seu feito maior foi O Projeto Brasil Nunca Mais, desenvolvido por ele, pelo Rabino Henry Sobel e pelo Pastor presbiteriano Jaime Wright com toda uma equipe de pesquisadores.

Foram sistematizadas informações de mais de 1.000.000 de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar. O livro publicado pela Editora Vozes “Brasil Nunca Mais” teve papel fundamental na identificação e denúncia dos torturadores do regime militar e acelerou a queda da ditadura. Eu pessoalmente sou-lhe profundamente grato por me ter acompanhado no processo doutrinário movido contra mim pelo     ex-Santo Ofício em 1982 em Roma sob a presidência do então cardeal Joseph Ratzinger.

No diálogo que se seguiu ao meu interrogatório, ele corajosamente deixou claro ao cardeal Ratzinger: ”Esse documento que o Senhor publicou há uma semana sobre a Teologia da Libertação não corresponde aos fatos que nós bem conhecemos; essa teologia é boa para os fiéis e para as comunidades; o Senhor assumiu a versão dos inimigos desta teologia que são os militares latino-americanos e os grupos conservadores do episcopado, insatisfeitos com as mudanças na pastoral e nos modos de viver a fé que este tipo de teologia implica”. E continuou: “Cobro do Senhor um novo documento, este positivo, que valide esta forma de fazer teologia a partir do sofrimento dos pobres e em função de sua libertação”. E assim ocorreu, três anos após. Tudo isso já passou. Fica a memória de um cardeal que sempre esteve do lado dos pobres e que jamais deixou que o grito do oprimido por seus direitos violados ficasse sem ser ouvido. Ele é uma referência perene do bom pastor que dá sua vida pelos pequenos e sofredores deste mundo.

                                              *****

PS. Respeitado e temido, amado e odiado, Dom Paulo tornou-se um símbolo de resistência. Denunciou as torturas nos quartéis, visitou presos em suas celas, liderou atos de protestos. No período mais difícil do regime, procurou o ditador Emílio Médici (Arena), em nome do episcopado paulista, para lhe entregar o documento “Não te é lícito”, no qual os bispos exigiam o fim das torturas. Médici deu um murro na mesa ao ouvir a advertência do cardeal e o pôs para fora de seu gabinete. “O senhor fique na sacristia, que nós cuidamos da ordem”, irritou-se o general. D. Paulo pegou de volta o exemplar da Rerum Novarum, a encíclica de Leão XIII que levara de presente, mas fora jogada de lado. Depois disso, só tiveram contatos protocolares. Em defesa dos direitos humanos, visitava operários, estudantes e políticos nas celas da polícia. Foi numa sala da repressão que conheceu Luiz Inácio Lula da Silva, que havia sido detido após as greves dos metalúrgicos do ABC. Ficaram amigos pelo resto da vida. Na época, o bispo de Santo André era d. Cláudio Hummes, mais tarde arcebispo de São Paulo, que abrigou nas igrejas da diocese trabalhadores impedidos de se reunir.

 Dom Paulo Evaristo Arns, o homem que a ditadura não silenciou. Saudades…

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