Segunda-feira, Novembro 25, 2024

Habeas pinho

Date:

O ano era 1955, em Campina Grande, na Paraíba, um grupo de boêmios fazia serenata numa madrugada do mês de junho, quando chegou à polícia e apreendeu o violão. Decepcionado, o grupo recorreu aos serviços do advogado Ronaldo Cunha Lima, então recentemente saído da Faculdade e que também apreciava uma boa seresta. Ele peticionou em Juízo para que fosse liberado o violão. Aquele pedido ficou conhecido como “Habeas-Pinho” e enfeita as paredes de escritórios de muitos advogados e bares nas praias no Nordeste. Mais tarde, Ronaldo Cunha Lima foi eleito Deputado Estadual, Prefeito de Campina Grande, Senador da República, Governador do Estado e Deputado Federal.

Eis a famosa petição:

Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara desta Comarca:

O instrumento do crime que se arrola,

Neste processo de contravenção,

Não é faca, revolver nem pistola,

É simplesmente, doutor, um violão.

Um violão, doutor, que na verdade,

Não matou nem feriu um cidadão,

Feriu, sim, a sensibilidade,

De quem o ouviu vibrar na solidão.

 

O violão é sempre uma ternura,

Instrumento de amor e de saudade,

Ao crime ele nunca se mistura,

Inexiste entre eles afinidade.

 

O violão é próprio dos cantores,

Dos menestréis de alma enternecida,

Que cantam as mágoas e que povoam a vida,

Sufocando suas próprias dores.

 

O Violão é musica e é canção,

É sentimento de vida e alegria,

É pureza e néctar que extasia,

É adorno espiritual do coração.

 

Seu viver, como o nosso, é transitório,

Porém seu destino se perpetua, 

Ele nasceu para cantar na rua,

E não para ser arquivo de Cartório.

 

Mande soltá-lo pelo Amor da noite,

Que se sente vazia em suas horas,

Para que volte a sentir o terno açoite

De suas cordas leves e sonoras.

 

Libere o violão, Dr. Juiz,

Em nome da Justiça e do Direito,

É crime, porventura, o infeliz cantar as mágoas que lhe enchem o peito?

 

Será crime, e, afinal, será pecado,

Será delito de tão vis horrores, perambular na rua um desgraçado derramando ali suas dores?

É o apelo que aqui lhe dirigimos,

Na certeza do seu acolhimento,

Juntando esta petição aos autos nós pedimos e pedimos também DEFERIMENTO.

Ronaldo Cunha Lima, advogado.

O juiz Arthur Moura, sem perder o ponto, deu a sentença no mesmo tom:

“Para que eu não carregue remorso no coração,

Determino que seja entregue ao seu dono,

Desde logo, O malfadado violão!”

 

Recebo a petição escrita em verso,

E, despachando-a sem autuação,

Verbero o ato vil, rude e perverso,

Que prende, no cartório, um violão.

 

Emudecer a prima e o bordão,

Nos confins de um arquivo em sombra imerso,

É desumana e vil destruição,

De tudo, que há de belo no universo.

 

Que seja Sol, ainda que a desoras,

E volte à rua, em vida transviada,

Num esbanjar de lágrimas sonoras.

 

Se grato for, acaso ao que lhe fiz,

Noite de lua, plena madrugada,

Venha tocar à porta do Juiz.    

 

 

 

 

 

 

 

*Marco Antonio Poletto é Gestor no Poder Judiciário, Historiador, Articulista e Animador Cultural

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